Friday, July 11, 2008

A Vila - Sinais da Cultura do Medo.


"(...)E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em guerra, e, portanto, em perigo, faz parecer natural a entrega de todo poder a uma pequena casta. (...) Não importa que, de fato, haja uma guerra e, como não é possível uma vitória decisiva, pouco importa que a guerra vá bem ou mal. O que importa é que possa existir o estado de guerra." [George Orwell, 1984]



Alguns dos motivos que nos fazem ter uma percepção diferenciada sobre o filme A Vila são bem óbvios. Primeiramente, pelo próprio diretor, produtor e escritor do filme, M. Night Shyamalan. Não se precisa conhecer muito sobre esse diretor para se ter uma "leve" impressão de que ele possui um jeito diferente de trabalhar com o que quer passar. Isso ficou bem claro em Sinais, seu outro filme de grande repercussão; um filme fantástico em que Shyamalan trabalha sobre um assunto extremamente sutil, mas de uma forma singular. Infelizmente, não foi o que os comentários do "pós-sessão" confirmaram. Houve muitas críticas, principalmente devido à quebra de espectativa. Só observando, não era um filme de ficção científica, para os mais exaltados. Os que foram ao cinema com a intenção de ver Mel Gibson dizendo algo semelhante a: "Que a força esteja com você!", certamente se decepcionaram. É brilhante a forma como o diretor consegue desviar a atenção do público, deixando apenas os mais e mais e mais atentos perceberem o que ele realmente quis passar. Os E.T.s eram o que menos importavam no filme. Sim, se você achou que não sentiu medo suficiente, que bom que não sentiu mesmo, porque não era para ter sentido, ao menos não na intensidade em que as pessoas estavam esperando. As sutis coincidências, as mesmas que levaram a personagem de Mel Gibson a perder a fé e depois recuperá-la, acabaram por passarem despercebidas pelos espectadores que estavam esperando se veriam ou não os E.Ts, ou se a Terra seria destruída ou não.

E.T.s à parte, voltemos ao filme A Vila. Aqui, cena se repetiu. A expectativa criada no trailer em torno de um filme assustador, horripilante, aterrorizante, fez as pessoas irem mais uma vez ao cinema com a clara intenção de se "arrepiarem de medo". Realmente, algumas cenas, se não chegam a passar medo, provocam, de certa forma, um "suave" contorcer no estômago, ou seja lá onde for que sintamos essas coisas. A questão é que, mais uma vez, o autor não estava querendo nos mostrar se os seres da floresta existiram ou não, se destruiriam a Vila ou não e, muito menos, se aconteceria uma guerra entre "os da vila" e "os da floresta". E foi aí que os espectadores se perderam.

O filme abre uma abordagem tão ampla, que nos dá margem para discuti-lo e relacioná-lo com vários assuntos atuais. A própria cultura do medo é um deles. A idéia de que o mundo está parecendo muito mais violento do que ele supostamente seria é muito bem trabalhada no filme. A mídia faz-nos seu trabalho de forma exemplar nesse campo; a exposição crua e aberta com que os horrores do mundo nos chegam hoje parece-nos algo espantoso. Diria até apavorante. Os norte-americanos que o digam; a cultura do medo criada por Bush é uma das mais bem maquiavelicamente calculadas que há. Cria-se uma idéia de total terror entre as pessoas, uma situação de verdadeiro pânico a fim de, com isso, manter-se no poder. Algo como: "Vejam os horrores a sua volta. Eu estou fazendo algo para acabar com esse terror que coloca suas vidas em risco. (Logo, votem em mim.)". É exatamente a crítica perceptível em A Vila (e mostrado de uma forma até clara, quando mostra-se a cena das aulas das crianças, que detêm um verdadeiro pavor por um mundo que sequer conhecem. Quando o "professor" começa a falar e a explicar a elas uma determinada situação que ocorrera no local, a partir daí entendemos claramente o motivo do tamanho pavor que elas sentem do desconhecido. Os seres da floresta e a cidade lhes são retratadas de forma horrenda, se assemelhando ao verdadeiro inferno, onde demônios espreitam à procura de suas vítimas...). Muito mais por acreditarem que aquele lugar seja, de fato, um lugar melhor, aquelas pessoas estão alí por medo; medo da idéia de mundo além da floresta que lhes é passada. E esse estado de terror foi feito por pessoas próximas, parentes; indivíduos em que, supostamente, teríamos confiança *SPOILER* (e que foram capazes de ir tão longe com a própria mentira, que chegaram ao ponto de se fantasiarem de seres da floresta para confirmar o mundo que criaram), o que diremos de governantes que detêm o poder... *SPOILER*

Aliada a essa idéia de cultura do medo, podemos perceber, no filme, uma crítica, sutil, bem sutil, ao pensamento de Rousseau quando ele diz que: "O homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe". Uma das coisas que nos faz sentir isso é quando a Ivy Walker (Bryce Dallas Howard), protagonizando uma moradora da vila que é cega, chega à cidade e encontra o policial. Ao escutá-lo, ela diz: "Sua voz transmite coisas boas. Não era isso que eu esperava encontrar." Mais uma vez, a forte crítica à cultura do medo. O pavor de Ivy era imenso, a ponto de ela, realmente, acreditar que nada que estivesse além dos limites da vila pudesse transmitir algo bom. E, ao fato de o policial ter sido "bom" para Ivy, é que percebemos a crítica ao pensamento de Rousseau; o poder de corrupção da sociedade não se ampliaria para todos que estivessem incluídos nela. E mais uma prova dessa mesma crítica foi que, Lucios Hunt (Joaquin Phoenix), um dos protagonistas, sofreu uma tentativa de homicídio onde? Na cidade? Não, na vila, o lugar em que, supostamente, por todos estarem imunes do contato com a civilização e seus males, estariam imunes, também, da perversidade e dos atos bárbaros. Indepentente de Noah Percy (Adrien Brody), o suposto realizador da tentativa de homicídio, ter problemas mentais ou não, o filme deixou bem claro que o verdadeiro mal está enraizado no ser humano, está entranhado na sua carne desde o seu nascimento. Não importa pra onde ele vá, levará consigo esse instinto que não é característico de onde vivemos, mas de toda a espécie.

Mesmo o grupo de amigos que criou toda essa situação que prende as pessoas à vila não são melhores do que aqueles que praticam atos como os de Noah ou mesmo do que aqueles dos quais eles estavam fugindo. Se eles tiveram seus motivos para fazerem o que fizeram, o Noah os teve da mesma maneira. A forma de se expressar é que os diferencia. E será que tentar tirar a vida de um indivíduo é menos cruel do que mantê-lo vivo em uma mentira? Talvez, empatem em patamares de barbárie. Afinal, não nos esqueçamos de que toda a artimanha formulada em torno da idéia da vila matou tanto ou mais pessoas que os entes próximos que o mesmo grupo de amigos perdera devido à criminalidade das grandes cidades. A covardia em não ser capaz de atravessar o bosque para buscar remédios, a crença infantil em uma promessa de que jamais regressariam, tudo isso é retratado logo na primeira cena do filme com o enterro do pequeno Nicholson. Todos lamentam a morte dele, mas é apenas isso que fazem. Lamentam. Grande mundo de sonhos esse em que vivem.

Um outro fato bem interessante que podemos abstrair do filme é a covardia do homem Pós-moderno, a tentativa de criar uma válvula de escape do mundo ao qual ele pertence. Todos alí, de certa forma, buscavam a felicidade. Aliás, ela é almejada por todos os seres humanos, de todas as épocas. A diferença está na forma que se quer alcançá-la. E essa, definitivamente, foi a melhor crítica do filme. O homem, hoje, quer conquistar a felicidade, não indo de fato atrás dela, mas tentando se esquivar do sofrimento, para que ela possa ocupar o que seria seu devido lugar; como se o sofrimento fosse o que impedisse o ser humano de ser feliz. Podemos perceber como o diretor trabalhou isso de forma fantástica! O sofrimento acompanhou o grupo de amigos, da mesma forma que os males inatos dentro deles. Por mais que a idéia de paraíso estivesse contida na vila, o sofrimento persistiu; a felicidade não foi alcançada pela tentativa de fuga do sofrimento.

Temos, porém, uma nítida sensação de felicidade ao filnal do filme. Por quê? Vejamos. A felicidade chega com o regresso de Ivy. E o que esse regresso representaria? Não a fuga do sofrimento, mas sim, a superação desse. E isso sim, é de arrepiar no filme. Felicidade e sofrimento seriam apenas duas faces de uma mesma moeda; estão contidas em um único contexto. Não foi a covardia do grupo de amigos, ao tentar fugir so sofrimento, que alcançou a felicidade. Pelo contrário. Essa foi alcançada pela determinação e coragem de Ivy, pela perseverança e pela esperança que guiava seus passos na floresta. A felicidade foi conquistada pelo enfrentar, não pelo fugir. Não é se fugindo do tormento que se é feliz. Se fosse assim, porque todos simplesmente não suicidariam? Seria uma forma bem prática de, fugindo da dor e da angústia, se a felicidade fosse assim obtida, de possuí-la definitivamente. Não...a felicidade é uma conseqüência; um prêmio pela nossa força de vontade, pela nossa garra por mais uma batalha vencida. Como ser feliz sem ter sofrimento? Eis o encanto de Shyamalan. Estão alí representados, nas personagens, esteriótipos sociais que vivem hoje; e o filme deixa bem claro qual deles vence.

A vida é para ser vivida de forma profunda e encantadoramente intensa. O sofrimento faz parte disso. É na superação dele que atingimos um sentimento tão belo quanto a felicidade. E outra: o verdadeiro cego não é aquele que tem sua visão comprometida. Ivy via o mundo muito mais do que praticamente todos na vila. Nós só vemos o que queremos ver e só acreditamos no que queremos acreditar. Não precisamos de olhos abertos para ver o mundo; precisamos, sim, de mentes abertas para compreendê-lo. A mente é "o olho que tudo vê". Para isso, ela precisa ser treinada; e não há treinamento melhor do que o próprio uso. Quando passarmos a ver o mundo com os olhos da mente, é que o veremos de fato, pois, a partir de então, muito mais do que simplesmente enxergar, nós o sentiremos...e, enfim, entenderemos que o mundo não é perfeito, não foi e dificilmente o será; mas a arte de viver é exatamente essa: tirar-se o maior bem do maior mal, já dizia Machado de Assis.

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